por Juddy Garcez
Com o advento das abordagens pós-positivistas em Relações Internacionais (RI) e o adensamento de olhares críticos nas análises acerca da política internacional, abriram-se as portas para os mais diversos estudos, o que inclui não somente novas metodologias e epistemologias, mas também ontologias derivadas de uma multiplicidade de campos, a exemplo dos estudos feministas, literários e cinematográficos.
Assim, embora ainda permaneça como uma temática central, a ideia de que as relações internacionais são permeadas somente pelas interações inter-estatais e/ou institucionais, já vem sendo desafiada pelo menos desde os anos 1980, como nos mostram as teóricas críticas e adeptas do pós-positivismo (LAPID, 1989; ZALEWSKI, 1996; LAKE, 2013). Uma abordagem que possui potencial para grande destaque é a literária, passível de nos oferecer diferentes aportes teóricos e metodológicos.
Para Sheeran (2007), a literatura é uma forma valiosa de compreensão do passado, presente e futuro das relações sociopolíticas, sendo ela um meio de influência e também de criação da política mundial. A busca de novelistas pela captura da “realidade”, o que quer isso signifique, configura, portanto, um esforço válido e útil em nossa própria busca pela compreensão da (re)construção dos diferentes mundos nos quais vivemos, em especial no que se compreende como reino internacional.
Ainda conforme Sheeran (2007, p.XIV-XV, tradução nossa¹)
Sugere-se o uso de literatura – uma literatura que fala através das várias vozes de ficção, música e arte informa ações que podem ter consequências dramáticas nas relações entre os Estados. (...) O uso da literatura para descompactar a complexidade nas Relações Internacionais procura fornecer um veículo teórico para discernir e revelar o significado das preferências, equívocos e interpretações que povoam histórias com antagonismos e represálias, temas que invariavelmente levam à perturbação da paz e à propensão à guerra. A literatura é global no sentido de histórias universais que registram o lutas do dia a dia.
Desse modo, é possível inferir que a literatura é rica tanto enquanto fonte teórica quanto metodológica, podendo contribuir para novos olhares e horizontes na política internacional. No que tange especificamente aos modos através dos quais ela é capaz de causar disrupção, é possível pensarmos em alguns títulos que nos auxiliem na compreensão de estratégias políticas, sejam elas diplomáticas ou não, em especial no que diz respeito a temas como guerra, paz, império, movimentos sociais, organização política e luta armada. Alguns títulos surgem à mente quando pensamos a partir dessa ótica: a série Guerra dos Tronos, a franquia Star Wars, as trilogias de Jogos Vorazes e Divergente, a sextologia de Duna, a saga A Fundação e tantos outros que, com suas óbvias referências distópicas, ainda que calcadas em certa materialidade, tornam possível a elaboração de diversos paralelos comparativos tanto entre o passado e o presente da política internacional, quanto com relação a possíveis futuros.
O desafio, no entanto, é traçar rotas de leitura que escapem dessa obviedade que, embora frutífera, nos enclausura no universo conhecido. Assim, neste texto a nossa principal proposta é a de imaginar novas realidades possíveis, partindo de dois dos mais interesses segmentos da literatura contemporânea: o afrofuturismo e o sertãopunk.
Em linhas gerais, o afrofuturismo é a imaginação dos futuros possíveis com base, por um lado, no resgate de uma ancestralidade africana, como forma de recuperação das heranças culturais, sociais, políticas e econômicas dos períodos anteriores às colonizações, e por outro, o tracejamento de linhas criativas pautadas na inventividade e na busca não somente pela sobrevivência, mas pela realização plena e possível do que significa ser africano.
O pensamento, a literatura, a música, a pintura, as artes visuais, o cinema, as séries televisivas, a moda, os cantos populares, a arquitetura e o ritmo das cidades são espaços onde se desenham e se configuram as formas vindouras da vida individual e social. O mundo de amanhã está em germe neste e seus sinais são decifráveis no presente. (SARR, 2019, p.133)
O afrofuturismo pode ser vislumbrado em diferentes espaços artísticos e criativos, mas não só isso: no livro de Felwine Sarr, Afrotopia, vemos uma problematização um tanto mais acadêmica acerca do pensamento sobre a África. Com uma releitura sobre o que significa desenvolvimento, miséria, pobreza, escassez e toda a sorte de imaginários negativos sobre o continente, o músico e escritor nos leva em uma jornada que desvela a verdadeira África: um local múltiplo, que certamente possui pontos positivos e negativos, e cujas nuances são muito mais acentuadas do que as fazem parecer.
A impossibilidade de permanência no tempo presente, isto é, o eterno “o que virá a ser”, neste caso, é abraçada e ressignificada: o que será, portanto, cabe aos próprios africanos definirem. E de que forma melhor que tal realização poderá ser feita senão através de criações profícuas e positivas, que reimaginam as impossibilidades do hoje e as traduzem no amanhã?
E é exatamente desse movimento de se pensar o amanhã a partir do hoje que nasce também o sertãopunk. De modo bem simples, o sertãopunk é um movimento literário, mas que se exacerba para além deste nicho, idealizado por G. G. Diniz, Alan de Sá e Alec Silva. No livro inaugural, “Sertãopunk: histórias de um nordeste do amanhã”, publicado em 2020, os autores introduzem algumas colocações que acreditam ser indispensáveis para posicionarmos o nordeste no centro: de elucubrações literárias a um possível futuro em que a escassez não é mais um problema, ainda que as desigualdades perdurem.
Transitando entre as fronteiras impostas ao nordeste via um imaginário ora fetichista, ora encarcerador, os autores estabelecem algumas diretrizes acerca dos elementos que compõem o sertãopunk: realismo mágico, solarpunk², afrofuturismo, independência regional, coronelismo, cangaço e banditismo, religiosidade e outros tantos temas que compõem um futuro utópico ou mesmo distópico.
Tanto afrofuturismo quanto sertãopunk, portanto, são movimentações criativa que, se firmadas em no nicho literário em um primeiro momento, certamente em um segundo se expandiram para abarcar futuros imaginados, calcados em um hoje marcadamente longe do ideal, mas que é passível de ser relido, transformado e construído. Um ponto interessante a se ressaltar aqui é a influência artística e visual que os dois movimentos carregam: pautados em pensamentos arquitetônicos e arte digital que leva em consideração diferentes elementos da Natureza, água e o solarpunk, mas também as múltiplas invenções de moradia, melhora no trânsito e tecnologias conhecidas ou não, como é possível observar na imagem no início desse texto. E como pensar a política internacional a partir dessas óticas, então?
Diferentes são os caminhos que podem ser seguidos nesse contexto. Aqui, neste breve artigo, oferecemos somente dois: o primeiro deles vincula-se ao questionamento acerca da política internacional como é hoje. Ao associarmos as leituras das abordagens críticas, a exemplo daquelas promovidas pelos feminismos, pós-colonialismos e decolonialismos, é possível desconstruirmos os discursos hierarquizantes que impugnam as abordagens do mainstream, em especial aqueles relacionados aos marcamos “desenvolvimento”, “Terceiro Mundo”, “Estado falido”, “terrorismo” e muitos outros. Ao nos engajarmos em um debate crítico acerca do que significa comumente os termos supramencionados, e principalmente quem, com qual propósito, como e de onde são aqueles e aquelas que os definem, podemos dar os passos iniciais para a quebra dos binarismos tão proeminentes nas relações internacionais e na disciplina.
Uma segunda via através da qual podemos operacionalizar as movimentações afrofuturistas e do sertãopunk vincula-se também com a primeira, mas baseia-se no tempo que há de vir, isto é, o futuro da política internacional. É o vislumbramento, via interpelações mais empiricistas, do que pode ser feito na construção do amanhã. Ou melhor, é a observação das questões mais práticas. É a elaboração de modelos e planos de políticas públicas que tenham como objetivo a melhora nas vidas de grupos historicamente minoritários; é a busca por sistemas inteligentes e a implementação de recursos em prol do combate à crise ambiental; é o diálogo inter e transdisciplinar que visa desenvolver estratégias de ampliação da participação democrática. Em suma, é, de fato, a práxis libertadora.
E como explorado na figura disponível no início do texto, derivada da brilhante série de João Queiroz, artista brasileiro que trabalha com as temáticas de amazonfuturismo, solarpunk e cyberpunk, o futuro reside no hoje e a política mundial nada mais é do que uma grande rede pautada nas RIs do dia a dia, conforme abordagem de Cynthia Enloe (2000). O amanhã só pode surgir quando conseguimos tangibilizar a sua própria existência. E que tal, então, construirmos um futuro melhor juntas?
Notas
¹ It is suggested that the use of literature – a literature that speaks through the various voices of fiction, music and art informs actions that may have dramatic consequences in the relations between states. (...) The use of literature to unpack the complexity in International Relations seeks to provide a theoretical vehicle to discern and reveal the meaning of preferences, misconceptions and interpretations that Introduction xv populate stories with antagonisms and reprisals, themes that invariably lead to the disturbance of peace and the propensity of war. Literature is global in the sense of universal stories recording the struggles of everyday life.
² “Enquanto subgêneros punk da ficção científica trazem a distopia e a decadência como maneiras de questionar as instituições e paradigmas da sociedade atual, a característica mais proeminente do solarpunk é o otimismo. O solarpunk traz questionamentos não explorando a decadência e ruína dos sistemas existentes, e sim imaginando quão brilhante poderia ser um futuro onde eles não existam mais. A estética é bem iluminada, cheia de plantas, painéis solares; são exploradas as mudanças radicais no modo de vida e meios de produção que seriam necessárias para o surgimento de um mundo melhor. Se os demais subgêneros da família tendem para a distopia, o solarpunk tende a utopia, utopia esta baseada em desenvolvimento tecnológico sustentável, utilizando-se de fontes de energia renováveis, como a energia solar. A relação do solarpunk com o Nordeste é bastante simples, para além do fato de termos um sol de lascar: nem mesmo o presente poderia existir sem algum gerenciamento inteligente de recursos naturais. É muito difícil, portanto, imaginar um futuro tecnologicamente avançado para região onde a sustentabilidade não seja palavra de honra. (...) Entretanto, é importante levantar um ponto aqui que separa o sertãopunk de tão somente um solarpunk nordestino: não é porque existe desenvolvimento sustentável que ele vai chegar de maneira uniforme para toda a população.” (DINIZ, G. G., 2020, p.13-14)
Referências Bibliográficas
DINIZ, G. G.; SÁ, A. Sertãopunk: Histórias de um Nordeste do Amanhã. Organizado por Alec da Silva. Ebook Kindle, 2020.
DINIZ, G. G. Solarpunk, Setãopunk e Um Futuro Sustentável. In: DINIZ, G. G.; SÁ, A. Sertãopunk: Histórias de um Nordeste do Amanhã. Organizado por Alec da Silva. Ebook Kindle, 2020.
ENLOE, C.. Bananas, Beaches and Bases: Making Sense of International Relations. Los Angeles: University of California Press, 2000.
LAKE, D. A. Theory is dead, long live theory: The end of the Great Debates and the rise of eclecticism in International Relations. European Journal of International Relations, 2013.
19: 567.
LAPID, Y. The Third Debate: On the Prospects of International Theory in a Post-Positivist Era. International Studies Quarterly, Vol. 33, No. 3 (Sep., 1989), pp. 235-254.
QUEIROZ, J. Coming back from kindergarten. Publicado em ArtStation, 2020. Disponível em: https://www.artstation.com/artwork/Pm9w3r. Acesso em: 12 jun. 2022.
SARR, F. Afrotopia. Tradução: Sebastião Nascimento. N-1 edições, 2019.
SHEERAN, P. Literature and International Relations: Stories in the Art of Diplomacy. Hampshire: Ashgate, 2007.
ZALEWSKI, M. 'All these theories yet the bodies keep piling up': theory, theorists, theorizing. In: SMITH, S. BOOTH, K. ZALWSKI, M. (eds), International Theory: positivism and beyond. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.
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